Por que a educação clássica importa para o mundo moderno – Tiago Barreira

 

Escola de Atenas (Foto: Rainer Erbert)

Para Platão, para que o homem seja verdadeiramente livre e justo, é preciso provê-lo de uma educação que promova a moderação de suas paixões e apetites. Esta justiça e liberdade interior é alcançada através da perfeita harmonia entre três componentes de uma alma humana, a parte inferior libidinosa (relacionada a desejos e funções reprodutivas e de alimentação), a parte intermediária irascível (relacionada a impulsividade e funções de iniciativa e vontade) e a parte superior racional (relacionada a funções de raciocínio e intuição). Cada uma das três partes apresentam o seu devido papel funcional no conjunto da vida humana e não podem ser nem inteiramente suprimidas e nem inteiramente exacerbadas, sob ameaça de autodestruição.

O grande brilhantismo e originalidade de Platão está em aplicar este modelo tripartite da alma interior humana, com toda a sua dinâmica de tensões e conflitos psicológicos, ao plano político e social exterior. Platão seria o primeiro cientista social e fundaria a primeira teoria política da história, ao afirmar que, assim como uma alma humana é composta por partes racionais, irascíveis e libidinosas, uma sociedade política é composta por três partes análogas, correspondentes às classes intelectuais, militares e populares. Que assim como uma alma individual justa e livre necessita de equilíbrio interior entre suas três partes, um estado justo e livre requer três classes equilibradas, atribuindo a cada uma destas o seu devido papel social, sem que uma se sobreponha às demais, sob ameaça de anarquia e dissolução em demagogias e tiranias. Psicologia e Política, mundo exterior e interior, vida pessoal e social, estão intimamente entrelaçados.

VIRTUDE ALMA (PSIQUE) CLASSE
Sabedoria Racional Filósofos
Coragem Irascível Soldados
Temperança Libidinosa Artesãos/Comerciantes

A teoria platônica das classes: Harmonia entre as classes corresponde ao equilíbrio interior da psique humana

 

Toda crise social e política exterior vivenciada em uma época está, portanto, associada a desequilíbrios psicológicos interiores, ou da alma segundo Platão, de seus membros. De nenhuma maneira isso pode ser visto de forma tão clara como no mundo ocidental moderno, e em especial no Brasil. No decorrer das últimas décadas, vivenciamos o acelerado declínio espiritual e moral de uma sociedade de massas crescentemente reduzida ao seu lado mais passional e libidinoso, às custas de grande atrofia e repressão das dimensões irascíveis e intelectuais da psique humana. Vemos, por exemplo, esta atrofia e repressão do elemento irascível da psique humana na atual criminalização das virtudes de coragem e assertividade masculina, tidas crescentemente por movimentos feministas como tóxicas. Vemos também uma atrofia de elementos intelectuais diante do crescente desestímulo ao debate genuinamente filosófico e científico, subordinando o espírito de livre investigação aos ditames cegos de pautas acadêmicas da moda.

Sob o meu ponto de vista pessoal, mesmo sendo um grande entusiasta dos valores liberais e racionalistas conquistadas pelo mundo ocidental nos últimos séculos, não posso deixar de reconhecer o valor de alguns críticos do liberalismo, que consideram a decadência moral e espiritual do homem moderno, com todos os seus transtornos psicológicos implicados, como parte de um processo de declínio inerente à própria sociedade moderna liberal. Esta crítica à modernidade liberal, na verdade, longe de ser uma negação reacionária da realidade e uma apologia nostálgica de eras pré-capitalistas, possui raízes remotas no próprio pensamento iluminista e liberal, como em Adam Ferguson, filósofo escocês do século XVIII.

O pensamento de Ferguson vai contra a corrente de uma época de predomínio de pensadores como Locke, Hume e Smith, que via com bons olhos as virtudes burguesas e liberais de prudência e comércio enquanto fontes de progresso econômico e bem-estar. Ferguson considerava que, à medida em que uma sociedade progride economicamente com o contínuo processo de especialização e divisão do trabalho, a mesma especialização levaria não a um progresso moral, mas a uma mutilação mental e moral das consciências humanas.

Tratam-se de indivíduos crescentemente autocentrados em suas profissões e na vida privada atomizada, que tendem a perder o senso de gratidão, lealdade e pertencimento à comunidade que nasceram. Paralelamente, se envolvem em uma vida comercial e pacífica, sem guerras, que culminam na perda das virtudes heroicas de coragem, honra e autossacrifício. Ferguson já observava os efeitos desta mutilação mental no século XVIII, ao contrastar a civilização iluminista de Paris, com a sua sociedade aristocrática corrompida, polida e elegante, com a coragem e firmeza dos povos primitivos Highlanders escoceses e as virtudes primitivas nos heróis épicos gregos e romano de Homero e Virgílio. E foi Ferguson, e não exatamente  Rousseau, o ancestral direto da mentalidade romântica de confronto entre pureza bárbara x corrupção civilizada.

Este estreitamento espiritual produz graves consequências sociais. Quando o espírito militar e marcial de autodefesa é pouco exercitado e posto de lado em uma sociedade em favor de trocas pacíficas, as portas para o controle tirânico de uma minoria bélica violenta sobre uma maioria pacífica desajustada e enfraquecida se encontram abertas. Ferguson, deste modo, ao contrário do que pensava Smith, via que o comércio e progresso econômico não produziria ao longo de gerações pessoas cada vez mais virtuosas, independentes e livres, mas sim mais desajustadas passionalmente, menos inteligentes, mais acovardadas e escravas de instintos tribais coletivistas. E a história recente prova que Ferguson tinha razão.

Devemos admitir que o próprio Smith e muitos pensadores da época não menosprezavam este problema. Todos estes reconheciam como fato os efeitos maléficos da sociedade liberal moderna na mutilação moral, propondo soluções que mitiguem estes efeitos, através da disseminação do ensino clássico às massas e do treinamento de milícias locais de cidadãos. Atividades que visassem o exercício de virtudes atrofiadas e a integridade psicológica da alma, tal como descritas na teoria educacional de Platão.

Em resumo, encontramos na obra deste importante filósofo escocês que a divisão do trabalho e especialização enriqueceu o mundo materialmente, mas produziu um rebaixamento de padrões morais e o declínio espiritual humano, pondo em ameaça o próprio ambiente de liberdade que a fomentou. Daí a grande relevância em se retomar os ideais pedagógicos da antiguidade clássica no ensino atual, enquanto forma de se reconquistar o verdadeiro ponto de equilíbrio entre as três principais partes integrantes da vida moral humana. Ponto de equilíbrio este que foi perdido pela modernidade. Redescobrir Platão e a ética das virtudes, e reconhecer o devido senso de medidas e proporções do bem e justo, é uma das grandes chaves para a formação de indivíduos verdadeiramente autônomos, equilibrados e uma sociedade genuinamente livre.

Tiago Barreira

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.

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