
O conhecimento humano se constitui de metáforas. Esta figura literária, embora relegada ao segundo plano pela ciência moderna, é a base de tudo o que se enuncia sobre o conhecimento, do qual a ciência é uma ramificação.
Tiago Barreira
Todo discurso científico nada mais é do que um modo de discurso construído rigorosamente a partir de premissas assentadas em metáforas literárias. A neurociência se acostumou a pensar no cérebro humano como um hardware, e o pensamento como um software funcional. A medicina moderna nasce das especulações cartesianas do corpo como uma grande máquina a funcionar mecanicamente como bombas hidráulicas.
A economia pensa no sistema de preços como uma grande “mão invisível”. A metáfora do nascimento, crescimento e morte de organismos vivos inspiraria teorias históricas de ascensão e declínio de civilizações, como a de Oswald Spengler. Metáforas guiam e norteiam o conhecimento e o processo de expansão do conhecimento humano. Mudanças de paradigmas e cosmovisões são consequências de mudanças na maneira com que interpretamos o mundo a que estamos imersos.
Metáfora e interpretação
Se a ciência é repleta de metáforas, mais ainda é a filosofia, um campo de saber dependendo de uma escala maior daquilo que a Inteligência Artificial dificilmente consegue replicar bem: a capacidade humana de interpretar.
O discurso filosófico, entendido como um processo de busca da unidade da consciência subjetiva na unidade do conhecimento, tem como um dos seus pilares a interpretação. Dito de maneira mais clara, e aplicando uma outra metáfora, tal como uma partitura de música que depende de um intérprete musical que a toque, o texto filosófico requer ser “tocado” por um intérprete para que possa dizer algo sobre o real e a existência, estabelecendo uma ponte entre sua vivência subjetiva pessoal e o enunciado do texto.
Por isso a Filosofia é o ponto de interseção articulador entre o discurso científico e literário-poético. Todo rigorismo excessivo da letra mata o espírito filosófico, devendo possuir este como prerrogativa o exercício mais pleno de sua liberdade criativa, a fim de produzir significações.
A metáfora do homem como espelho do universo
Se interpretar é estabelecer pontes entre o mundo interior subjetivo e exterior objetivo, esta ligação só se torna possível quando pressuposta uma outra metáfora poderosíssima: a identidade profunda entre o ser humano e mundo exterior. Ou segundo o ideal neoplatônico, da alma humana como um “microcosmo”, ou um universo em miniatura residente dentro de nós, replicando as mesmas estruturas que regem o funcionamento de sistemas macro a escala cosmológica.
Um exemplo concreto disso? Tome-se o caso do se passou há poucas semanas aqui na Espanha. O apagão de energia atingiu em cheio países da Península Ibérica durante mais de 10 horas em algumas localidades, afetando todo o sistema de telecomunicações e transportes e bancário, permanecendo muitos sem acesso a itens essenciais para a vida moderna. A Galicia, região onde me situo, seria uma das últimas a restabelecer-se totalmente, tendo anoitecido sob a plena escuridão de cidades inteiras, ruas e catedrais apagadas.
Esse evento singular o encarei como uma oportunidade: se tudo está apagado, tal como o mundo há séculos e milênios, por que não dar um passeio às escuras em um parque com lanterna – algo impensável no Brasil – e observar o céu? Não aquele céu mais tomado pela poluição visual das metrópoles, mas aquele totalmente limpo, captado por observatórios em campos mais remotos da Terra?
Um vasto mundo de constelações que se abria diante do céu limpo do Hemisfério Norte, permitindo uma visão privilegiada e única, abrindo aos olhos modernos atuais uma nova dimensão, como civilizações antigas compreendiam e interpretavam o mundo. De um céu cuja observação de fenômenos e cuja observação serviria de base, e da qual nasceriam as primeiras especulações sobre o destino e origem do cosmos.[1]
O sol se punha no parque, engolido pelas montanhas e silhueta das catedrais. Enquanto tudo se escurecia, vi com espanto o surgimento gradual dos corpos planetários e estelares. Primeiro a Lua, em seguida a estrela vespertina, e Marte. Pouco a pouco, o céu se enchia de uma vasta gama de constelações que escapava aos meus conhecimentos astronômicos, transmitindo uma verdadeira sensação vertiginosa de caos e pequenez.
Tendemos a mapear este caos com nomes, estabelecer uma ordem. Dividimos o céu em partes e setores. Antropomorfizamos corpos àquilo que nos traz mais familiaridade. Transformamos massas astrais em touros, escorpiões, guerreiros e deuses. Transformamos nuvens de estrelas em uma Via Láctea. Dito de outra maneira, interpretamos o caos e lhe damos um sentido.
Pois bem, e tomando como ponto de vista tudo isso, enquanto me via absorto com um céu desconhecido que se me revelava, compreendi as profundas analogias existentes entre os corpos estelares e planetários com a subjetividade humana, revelando o quão profunda é esta metáfora, tão presente entre os psicanalistas e filósofos. Da subjetividade individual humana como um espelho a refletir todo um universo objetivo por dentro, com toda a perplexidade e obscuridade fascinante que evoca.
O “mapa da alma” como metáfora
E tal como as constelações e a via láctea, nossa individualidade subjetiva possui um grande mapa estelar com aglomerado de complexos. Complexos são vórtices carregados de significado e força psíquica, que acompanham nossa vida interior, que impactam (mas nunca fatalisticamente) certos aspectos de nossos sentimentos, desejos, vontades e pensamentos.
O filósofo alemão Leibniz atribuiria um conceito similar a representar a subjetividade interior como um mapa espelho do mundo exterior: a mônada. Jung denominaria estes complexos estelares de arquétipos simbólicos, localidades e setores integrantes de uma cartografia celeste, um “mapa da alma”.
Este mapa interior da alma individual possui uma dimensão não somente psicológica micro-humana, como também cultural e social macro-humana, sendo identificada por Jung como participante do inconsciente coletivo. Constelações de símbolos inconscientes participam de uma coletividade na medida em que são compartilhados em uma cultura comum dotada de linguagem, trocas e comunicações intersubjetivas. Constituem assim os grandes motores de um destino comum coletivo de aspirações (e novamente sem cair no engano do coletivismo determinístico).
Pense em um complexo materno, ou complexos de heróis. O que nos leva ao apego a certa figura ou personagem de um filme ou obra, a querer emulá-los? O que torna certas pessoas tão atraentes e dotadas de poder carismático, em diversas esferas da vida social e política, capazes de contagiar multidões com um fogo lançado em um bosque dos galhos secos? A Fenomenologia simbólica desde Mircea Eliade se dedica a responder a estes impactos dos símbolos e arquétipos na estruturação de valores de uma cultura e sociedade.
Em nível microindividual, complexos arquetípicos moldam nosso caráter e personalidade moral, constituindo um verdadeiro mapa das preferências subjetivas[2] e aspirações pessoais de um indivíduo — onde queremos chegar. É nesse ponto que se situam os nossos anjos e demônios, como verdadeiros daemons (no sentido empregado por Sócrates), a iluminar a consciência terrena.
A grande dificuldade está no fato de que, muitas vezes, não somos capazes de identificar plenamente esses complexos nem de tomar plena consciência deles, o que desconecta a máscara social do nosso Ego consciente dessa fonte vital inconsciente. A psicanálise valoriza precisamente a busca dessa unidade e conexão entre inconsciente e Ego consciente — um verdadeiro processo de “mapeamento da alma”, denominado por Jung de individuação. Desequilíbrios afetivos surgem quando um sujeito desconhece a si mesmo, imerso no medo de uma alma obscura que não consegue integrar à sua consciência, sendo incapaz de lhe conferir uma unidade de sentido, interpretação e ordem. Como o mapa de um céu noturno desconhecido que traz vertigem.
Se o desconhecimento de si traz medo, ansiedade e insegurança, um outro extremo é o apego obsessivo a certas localidades e vórtices do mapa da alma, sendo a identidade individual “sugada” por determinados complexos — a subjugar de maneira similar aos bezerros de ouro do Pentateuco. Como se identificássemos esses complexos locais com o todo da realidade, divinizando-os, às custas da alienação psíquica que imbeciliza, enfraquece e desvitaliza. Não vemos nada além de poucos complexos, como se nada mais existisse — e tudo o mais, apagado. De um céu noturno apagado de brilho, como a poluição visual de uma metrópole.
[1] A astronomia babilônica e o nascimento da matemática foram muito potencializados por esse tipo de evento, integrando um conhecimento que ligava fenômenos do mundo terreno e supraterreno.
[2] A microeconomia se acostumou a pensar nas preferências individuais como elementos “dados” de um mapa subjetivo de utilidade, sem se perguntar como surgem tais preferências. Pouco espaço essa disciplina tem oferecido ao campo do imaginário simbólico e aos seus efeitos sobre a formação de preferências e a tomada de decisão racional, muito em razão dos preconceitos neopositivistas herdados de Karl Popper. A teoria dos complexos arquetípicos da psicanálise poderia, em muito, esclarecer um campo de conhecimento que só agora tem se aberto a aportações da psicologia, como se verifica no campo da economia comportamental.
Muito bom! Uma reflexão profunda da verdadeira busca pelo sentido de nossa vida interior.