Contra o Mito do Diálogo Judaico-Alemão

São necessárias duas pessoas para se ter um diálogo que se ouçam mutuamente, as quais estejam preparadas para perceber o outro como ele é e representa, e para responder a ele. Nada pode ser mais enganoso do que aplicar tal conceito às discussões entre alemães e judeus durante os últimos anos.

Contra o Mito do Diálogo Judaico-Alemão[1]

Gershom Scholem[2]

Tradução de Estevan de Negreiros Ketzer[3]

Meu caro Sr. Schlosser[4]:

Seu convite para contribuir com um volume para Margarete Susman[5] me honra na mesma medida em que me coloca em uma posição do mais agudo constrangimento. Não vejo outra maneira senão explicar a natureza desse constrangimento a você e, portanto, talvez aos leitores do Festschrift[6] planejado por você. Pois no anúncio deste volume, que você teve a gentileza de me enviar, afirma que o Festschrift “deve ser entendido não apenas como homenagem, mas também como um testemunho de um diálogo Judaico-Alemão, cujo núcleo é indestrutível”. Ninguém poderia ficar mais consternado com tal anúncio do que eu. Pois tão pronto quanto me encontro a prestar homenagem ao venerável fenômeno que é Margarete Süsman, com quem tenho laços mais profundos do que opiniões sobre as quais podemos concordar ou divergir, tão decisivamente devo recusar um convite para alimentar aquela ilusão, ininteligível para mim, de “um diálogo judaico-alemão, cujo núcleo é indestrutível”, à qual este volume, de acordo com sua definição, pretende servir. Permita-me explicar-me sobre isso com algum detalhe.

Nego que tenha havido tal diálogo alemão-judaico em qualquer sentido genuíno, isto é, como um fenômeno histórico. São necessárias duas pessoas para se ter um diálogo que se ouçam mutuamente, as quais estejam preparadas para perceber o outro como ele é e representa, e para responder a ele. Nada pode ser mais enganoso do que aplicar tal conceito às discussões entre alemães e judeus durante os últimos anos. Este diálogo morreu logo no início e nunca aconteceu. Morreu quando os sucessores de Moses Mendelssohn — que ainda argumentavam a partir da perspectiva de algum tipo de totalidade judaica, embora esta fosse determinada pelos conceitos do Iluminismo — concordaram em abandonar essa totalidade para salvar uma existência em pedaços lamentáveis ​​dela, cuja designação recentemente popular como simbiose germano-judaica revela toda a sua ambiguidade. Certamente, os judeus tentaram um diálogo com os alemães, partindo de todos os pontos de vista e situações possíveis, de forma exigente, suplicante e suplicante, servil e desafiadora, com uma dignidade que empregava todos os tipos de tons e uma indignidade desprezível, e hoje, quando a sinfonia terminou, talvez seja o momento oportuno para estudar seus motivos e tentar uma crítica de seus tons. Ninguém, nem mesmo alguém que sempre compreendeu a desesperança desse grito no vazio, menosprezará a intensidade apaixonada deste último e os tons de esperança e pesar que estavam em ressonância com ele.

A tentativa dos judeus de se explicarem aos alemães e de colocarem sua própria criatividade à disposição deles, até mesmo ao ponto da completa abnegação, é um fenômeno significativo, cuja análise em categorias adequadas ainda não foi concluída e talvez só se torne possível agora que chegou ao fim. Em tudo isso, não consigo perceber nada de diálogo. Nunca nada respondeu a esse clamor, e foi essa percepção simples e, infelizmente, tão abrangente que afetou tantos de nós em nossa juventude e nos destinou a desistir da ilusão de um “judaísmo alemão”. Onde os alemães se envolveram em uma discussão com os judeus com um espírito humano, tal discussão, de Wilhelm von Humboldt a Stefan George, sempre se basearam na abnegação expressa ou não expressa dos judeus, na atomização progressiva dos judeus como uma comunidade em estado de dissolução, da qual, na melhor das hipóteses, apenas os indivíduos poderiam ser acolhidos, seja como portadores de pura humanidade, seja mesmo como portadores de uma herança que, entretanto, se tornara histórica. Foi aquele famoso slogan das batalhas da Emancipação — “Para os judeus como indivíduos, tudo; para os judeus como povo (isto é: como judeus), nada” — que impediu o início de um diálogo judaico-alemão. A única parceria de diálogo que levou os judeus como tais a sério foi a dos antissemitas que, é verdade, responderam algo aos judeus, mas nada de benéfico. À inebriante embriaguez do entusiasmo judaico nunca correspondeu um tom que tivesse qualquer relação com uma resposta criativa aos judeus; isto é, uma que se dirigisse a eles em relação ao que tinham a dar como judeus, e não ao que tinham que abrir mão como judeus.

Para quem, então, os judeus conversaram naquele tão falado diálogo judaico-alemão? Falavam consigo mesmos, para não dizer que gritavam mais alto. Alguns se sentiam desconfortáveis, talvez até desanimados, mas muitos agiam como se tudo estivesse a caminho de se resolver, como se o eco de sua própria voz fosse inesperadamente transfigurado na voz dos outros que tanto esperavam ouvir. Os judeus sempre foram ouvintes de grande intensidade, um nobre legado que trouxeram consigo do Monte Sinai. Ouviam muitos tipos de vozes, e não se pode dizer que isso sempre lhes tenha sido útil. Quando pensavam que estavam falando com os alemães, estavam falando consigo mesmos. Ninguém, exceto os próprios judeus, por exemplo, eram “referidos” pela criatividade judaica de um pensador como Georg Simmel. E Simmel foi de fato um fenômeno verdadeiramente simbólico por tudo o que falo aqui, porque ele foi aquele fenômeno de um homem em quem a substância do judaísmo ainda se mostra mais visivelmente quando este chegou ao nadir puro da alienação completa. Abstive-me de abordar aquele capítulo profundamente comovente designado pelo grande nome de Hermann Cohen e a maneira como esse infeliz amante, que não se esquivou da transição do sublime para o ridículo, foi respondido.

A suposta comunidade indestrutível da essência alemã com a essência judaica consistia, enquanto essas duas essências realmente conviviam uma com a outra, apenas em um coro de vozes judaicas e era, no nível da realidade histórica, nunca nada além de uma ficção, uma ficção da qual, você me permitirá dizer que um preço muito alto foi pago por ela. Os alemães ficaram, em sua maioria, irritados com essa ficção e, na melhor das hipóteses, comovidos. Pouco antes de eu ir para a Palestina, surgiu o livro de Jakob Wassermann, Mein Weg als Deutscher und jude (Meu Caminho como alemão e judeu), certamente um dos documentos mais comoventes daquela ficção, um verdadeiro grito para o vazio que se sabia tal. A resposta a ele foi em parte constrangimento, em parte escárnio. Procurar-se-á em vão por uma resposta no nível do orador, uma que fosse, portanto, um diálogo. E se outrora, imediatamente antes do início da catástrofe, de fato se chegou a um diálogo na forma de uma discussão, então parecia aquele diálogo entre os ex-membros do Wandervogel, Hans Joachim Schoeps[7] e Hans Bhiher[8], cuja leitura ainda hoje causa arrepios no leitor. Mas por que acumular exemplos quando, afinal, todo aquele diálogo fantasmagórico entre alemães e judeus transcorreu em um reino tão vazio de ficção? Eu poderia falar sobre isso indefinidamente e, ainda assim, sempre me apegaria ao mesmo ponto.

É verdade: o fato de a criatividade judaica ter se manifestado aqui é percebido pelos alemães, agora que tudo acabou. Eu seria o último a negar que haja algo genuíno nisso — ao mesmo tempo, arrebatador e deprimente. Mas isso não muda mais nada sobre o fato de que nenhum diálogo é possível com os mortos, e falar de uma “indestrutibilidade desse diálogo” me soa como blasfêmia.

Seu,

GERSHOM SCHOLEM

Jerusalém, 18 de dezembro de 1962

Tradução da edição inglesa: SCHOLEM, Gershom. On Jews and Judaism in Crisis. Edited by W emer J. Dannhauser. New York: Schocken Books, 1976, pp. 61-64.


[1]Wider den Mythos vom deutsch-judischen ‘Gesprach’”, em Gershom Scholem, Judaica 2 (Frankfurt-am-Main: Bibliothek Suhrkamp, ​​1970), pp. Traduzido por Werner J. Dannhauser. Publicado originalmente em Manfred Schlosser, editor, Auf gespaltenem Pfad: Festschrift fiir Margarete Susman (Darmstadt, 1964).

[2] Filósofo e professor emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém.

[3] Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Email: estevanketzer@gmail.com.

[4] Um jovem escritor e antologista alemão. Ed.

[5] Poeta e ensaísta judeu-alemão (1874-1966) que escreveu sobre muitos assuntos, geral e judeu. O Festschrift em que a peça de Scholem apareceu contém uma bibliografia de seus escritos. Foi publicado em 1964, no nonagésimo ano de Susman, que também viu a publicação de sua autobiografia, lch habe viele Leben gelebt.-Ed.

[6] O termo alemão Festschrift é um livro que homenageia um professor influente no meio acadêmico alemão ainda em vida. Esse costume se tornou corrente em meios acadêmicos de fala alemã, sendo o livro uma coletânea de textos de alunos e colegas de expressão acadêmica (N. do T.).

[7] Schoeps (n. 1909) é um professor de história religiosa que escreveu sobre os primeiros anos do cristianismo. Antes da Primeira Guerra Mundial, ele articulou uma teologia judaica que aproximava o judaísmo o máximo possível do cristianismo. Ele também era um forte nacionalista alemão, convencido, mesmo em 1933, de que os judeus alemães poderiam se dar bem com os nazistas (embora lamentasse não ter reconhecido a natureza do nazismo em sua autobiografia de 1956).

[8] Bliiher (1888-1955) era conhecido por seus escritos sobre os Wandervogel e outros movimentos juvenis alemães. Publicou um tratado antissemita em 1922 e colaborou com Schoeps em 1933 no livro Streit urn Israel (Controvérsia sobre Israel – Ed.).


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