O Orientalismo de Edward Said

Jean-Léon Gérôme – Le charmeur de serpents. Reprodução: Wikimedia.

A obra Orientalismo (1978), do crítico e teórico literário árabe-palestino Edward W. Said (1935-2009), propõe investigar a gênese do termo orientalismo e a maneira como o Oriente foi representado na cultura e no imaginário do mundo ocidental.

Tiago Barreira

Edward Said (2002) Orientalismo: O Oriente como Invenção do Ocidente. Companhia das Letras.

Professor de Literatura da Universidade de Columbia, militante da causa palestina e crítico do sionismo judeu, o árabe-palestino Edward W. Said se notabilizou pela fundação dos estudos pós-coloniais em universidades ocidentais. Sua obra principal, Orientalismo (1978), impulsionou uma corrente de disciplina hoje predominante em cadeiras literárias e de humanidades no mundo, fundada na análise de discursos e de estruturas de poder implícitas em textos literários.

Este método, que abrange tanto os estudos pós-coloniais quanto os de gênero e raça, reflete uma atmosfera intelectual de uma época marcada pela politização excessiva de campos de conhecimento que, até então, eram considerados apolíticos, como a literatura e as humanidades.

O conceito de Orientalismo, segundo Said

O termo orientalismo engloba duas dimensões. De um lado, possui o sentido corrente, como um saber acadêmico desinteressado, ligado à figura do especialista em temas vinculados à língua, cultura e sociedade de países orientais (como o árabe e o persa). Um outro sentido, contudo, é atribuído por Edward Said. Inspirado pela tradição francesa pós-estruturalista e por Michel Foucault, Said definirá o orientalismo como um discurso interessado e construído a serviço de uma trama de poder e domínio imperial dos países ocidentais sobre os orientais. O conhecer, segundo os estruturalistas e Foucault, não possui um vínculo neutro e desinteressado com as coisas; ele não expressa um mundo real, objetivo, de verdades universais, como assumiria o conceito de ciência entendido pela visão de theoria em Platão.

O saber-poder no orientalismo europeu

Said replicará precisamente essa corrente intelectual ao colocar os estudos acadêmicos orientais, desenvolvidos em departamentos de filologia, arqueologia e história europeus desde o século XIX, como apropriações de uma cultura que não visavam a nenhum outro fim senão o da construção de um discurso de autoridade sobre a cultura de um povo distante.

Dito de outra maneira, para Said, a maneira como a identidade oriental foi sendo construída e representada na literatura e na ciência europeias — como um espaço exótico, lugar de excessos, sensualidade, irracionalidade e barbárie, a ser civilizado, tutelado e modernizado — reflete uma visão de Oriente que não se representa a si mesmo, mas que é representado passivamente de fora por um Outro, alheio à sua verdadeira essência.

Parafraseando Benjamin Disraeli, o estudo do Oriente “é uma carreira”. Dominar um assunto significa ganhar a autoridade de interpretá-lo e estabelecer relações de poder a partir dessa autoridade. Um psicólogo que analisa seu paciente possui direitos hermenêuticos sobre este. Conforme ilustrado por Foucault na ideia do panóptico de Bentham, a acumulação de conhecimento sobre o mundo implica a conquista de poder para manipulá-lo e controlá-lo, seja na dimensão natural, social ou política. Ou, reproduzindo Francis Bacon, saber é poder.

Segundo Said, o Oriente islâmico, aos olhos do europeu, era então um território obscuro e desconhecido, habitado por um povo intruso e considerado um terreno de heresias, como o maometanismo — Dante, por exemplo, representou Maomé no oitavo dos nove círculos infernais, próximo a Lúcifer[1] – , seria a partir do século XVIII um território progressivamente mapeado em sua cultura, abrindo caminho para sua exploração futura. De um saber herético, perigoso e desestabilizador da fé cristã ocidental, a cultura islâmica passaria a ser estudada criticamente à luz do saber iluminista e positivista. Silvestre de Sacy, Ernest Renan e Edward Lane são exemplos de pensadores enumerados por Said que lançariam luz crescente sobre o território oriental, permitindo que os europeus caminhassem com segurança sobre este para melhor controlá-lo.  

A descoberta do Oriente

O ponto de virada inicial ocorreria com a publicação da obra Description de l´Egypte (1735), um marco inaugural do projeto orientalista moderno, e a invasão de Napoleão no Egito em 1798. O Egito, até então um imerso na obscuridade, conhecida até então por meios indiretos e expedições de viajantes e eruditos, se converteria em um departamento do saber francês[2] (Said, 2002). O Ocidente, desde então, passaria a promover, legitimado pelos avanços conquistados pela ciência moderna dos séculos XVII e XVIII, a missão histórica de modernizar um Oriente decadente e atrasado, com o objetivo de restaurar sua antiga glória de civilizações clássicas, como a egípcia e a persa e babilônica[3]. Said via isso como uma postura nitidamente paternalista, que não teria sido possível senão por meio do discurso intelectual orientalista.


A tradução, publicação e divulgação de textos árabes e sânscritos na Europa, nesse período, ampliariam ainda mais os conhecimentos da ciência ocidental sobre o Oriente. A filologia, como ciência, nasceria nesse contexto, ao classificar e catalogar as línguas semíticas. O darwinismo social do século XIX, inspirado pelo conde de Gobineau, também situaria os povos árabes e orientais dentro do quadro da classificação racialista, considerando-os atrasados e necessitados de serem civilizados por meio da tutela europeia.

O mito da irracionalidade oriental

Uma discussão levantada por Said está no fato de o discurso orientalista europeu reforçar estereótipos culturais sobre os árabes sob o pano de fundo de um discurso acadêmico de linha positivista, imparcial e pretensamente objetivo. Estereótipos esses que foram recorrentemente replicados ao longo da história em discursos políticos, obras literárias de escritores, poetas e até mesmo viajantes.

O mito da irracionalidade árabe retrata esses povos como pouco afeitos à racionalidade e à autonomia individual humana, sendo vistos como sentimentais e dotados de um discurso argumentativo pouco racional e desorganizado, incapazes de construir uma sociedade democrática e propensos à tirania e à sedução por líderes autoritários. Outro mito recorrentemente empregado é o da ideia de um povo vingativo, com relações sociais fundadas na lei de talião, na desconfiança e na punição como elementos centrais da vida doméstica e social, especialmente em questões como adultério e roubo.

Críticas à obra

O Orientalismo, de Said, apresenta muitos problemas metodológicos, como apontado por especialistas da área. O historiador Bernard Lewis[4], em sua crítica à obra, aponta para uma seletividade do material bibliográfico tratado por Said, recortado para moldar-se de maneira pré-determinada à visão foucaultiana de saber-poder do autor.

A própria ideia do orientalismo como um projeto intelectual de legitimação de um imperialismo ocidental, seja de maneira consciente ou inconsciente, é uma tese extremamente problemática, especialmente se considerarmos que uma parte importante dos estudos orientais se deu em países que não possuíam colônias orientais, como a Alemanha. Além disso, outras regiões da Europa, como a Espanha, são marcadas não por uma postura de antagonismo cultural e de “choque de civilizações” com o Oriente, mas por uma histórica integração e familiaridade cultural[5]. Os autores analisados por Said, deliberadamente ingleses e franceses, são equivocadamente generalizados para representar todo um bloco de pensamento “ocidental”.

A obra de Said também se voltou muito enfaticamente para a problemática do mundo islâmico e árabe, dando pouco espaço aos estudos persas, chineses e indianos, que constituem civilizações asiáticas de grande expressão na história oriental.

Como explicar a perspectiva romântica que os alemães tinham sobre o oriente, como Schlegel em Über die Sprache und Weisheit der Indier (1808), a valorizar a sabedoria oriental indiana e imbuído da crença de que é o Ocidente, e não o Oriente, a cultura decadente a ser regenerada? Como explicar autores como René Guénon, um francês católico convertido, no final da sua vida, ao islã sufi no Cairo, que via o Oriente contemporâneo como remanescente civilizacional do tronco de uma grande tradição espiritual esotérica perdida no Ocidente e, portanto, fonte valiosa de estudos para a superação da crise espiritual ocidental?

Como bem destacado na crítica de Lewis, o fato de alguém não ser oriental não o desqualifica para estudar o Oriente por ser um estrangeiro acusado de ter uma agenda oculta de poder sobre o Oriente contemporâneo, assim como um helenista de um departamento de estudos clássicos nos Estados Unidos não perde credibilidade ao pesquisar a Grécia clássica, pela acusação de ser um estrangeiro com intenção oculta de dominação sobre a Grécia atual.

Seriam todos os estudiosos ocidentais sobre o Oriente meros agentes inconscientes de um projeto de poder imperial? A tentativa de Said de descredibilizar todo um conjunto de estudos e especialidades estabelecidos academicamente por autores com fontes de interesse diversas põe em xeque a objetividade de sua obra, o que evidencia a problemática de seu modo de pensar típico do pós-estruturalismo da pós-modernidade, que menospreza a capacidade de pensadores transcenderem o jogo de poder de sua época em busca de um conhecimento desinteressado sobre qualquer assunto[6].

O islã e o debate contemporâneo da liberdade

Contudo, apesar das inconsistências metodológicas do autor e da seletividade do material bibliográfico escolhido por ele, uma reflexão interessante quanto aos estereótipos perpetuados na academia ocidental pode surgir da obra, o que traz grandes implicações para a compreensão da geopolítica atual do Oriente Médio, em particular o conflito entre Israel e os palestinos.

É possível uma democratização da sociedade de países árabes? Pois um dos grandes empecilhos ao processo de diálogo e negociação para a formação de um novo Estado palestino está precisamente na desconfiança ocidental quanto à capacidade da população palestina de constituir um governo democrático liberal, estável e aberto, capaz de manter relações pacíficas e não beligerantes com Israel. Até que ponto essa desconfiança se encontra fundada em temores concretos, como evidenciado na vitória eleitoral do Hamas em Gaza, ou se é infundada, a partir do mero estereótipo cultural de que os islâmicos são inerentemente expansionistas e antidemocráticos, é um tema a se discutir[7].

Devemos considerar, como um contrafactual a esta ideia corrente de que os muçulmanos não estão preparados para a democracia liberal, a própria Primavera Árabe e a onda massiva de protestos na década de 2010 no mundo árabe, resultando em um governo democrático e funcional na Tunísia. Os protestos, embora tenham fracassado no Egito, Líbia ou Síria, demonstram até que ponto podemos ver um espírito democrático genuíno nascer no mundo árabe.

Referências Bilbiográficas

Akyol, M. (2013). Islam without extremes: A Muslim case of liberty. W.W. Norton & Company.

Gillespie, N. (2017), Islam Without Extremes: The Muslim Case for Liberty [Video]. Reason. https://reason.com/video/2017/02/28/islam-without-extremes-mustafa-akyol/

Goytisolo, J. (1997). De la Ceca a La Meca: Aproximaciones al mundo islámico. Editorial Seix Barral.

Le Mascrier, J.-B. (1735). Description de l’Égypte, contenant plusieurs remarques curieuses sur la géographie de ce païs (Éd. 2017). Hachette Livre BNF. 612 páginas.

Lewis, B. (1982). The question of orientalism (pp. 1993-99). New York Review of Books.

Said, E. (2002). Orientalismo. Companhia das Letras.


[1] “O contato europeu [medieval] com o Oriente e, especificamente, com o islã fortaleceu este sistema de representação do Oriente e, como Henri Pirenne sugeriu, fez do islã a essência mesma de um ser exterior contra o qual se cimentou a civilização europeia a partir da Idade Média”. […] No poema de Dante, nas obras de Pedro o Venerável e de outros orientalistas cluniacenses, nos escritos de polemistas cristãos contra o islã, desde Guilbert de Nogent e Beda até Roger Bacon, Guilherme de Tripoli, Buchard de Mont-Sion e Lutero, no Cantar de Mio Cid, na Chanson de Roland e em Otelo de Shakespeare (este ‘enganador do mundo’), Oriente e o islã sempre se representavam como intrusos que tinham um papel especial a desempenhar no interior da Europa” (Said, 2002).

[2] “Como o Egito estava carregado de significado para as artes, as ciências e o governo, seu papel consistia em ser o cenário em que sucederiam ações de uma importância histórica e mundial. Assim, ao apoderar-se do Egito, uma potência moderna demonstraria de modo natural sua força e justificaria a história; o próprio destino do Egito era ser anexado preferencialmente à Europa” (Said, 2002).

[3] “Restaurar uma região em estado de barbárie para devolvê-la à sua antiga grandeza clássica, e mostrar (em seu benefício) ao Oriente os métodos do Ocidente moderno; […] formular o Oriente, dar-lhe uma forma, identidade e uma definição; […] ter o sentimento, como europeu, de dispor da história, do tempo e da geografia do Oriente; instituir novas áreas de especialização; estabelecer novas disciplinas; dividir; organizar, esquematizar, pôr em quadros, fazer índices e registrar tudo o que era visível (ou invisível); […] estas são as características da projeção orientalista que se realizou em Description de l’Égypte e que permitiu e reforçou a absorção totalmente orientalista do Egito por parte de Napoleão, através dos instrumentos do conhecimento e do poder ocidentais” (Said, 2002).

[4] Ver Lewis, B. (1982). 

[5] Said posteriormente reconheceria, em seus anos finais, indo em direção contrária à sua tese central, que o orientalismo espanhol é marcado por uma perspectiva distinta e própria. A cultura espanhola e o islã se ‘habitam mutuamente, ao invés de se confrontar com beligerância’, e ‘existe uma relação de complementariedade e até de intimidade que raramente se repetiu fora da Península Ibérica’ (Said, 2002). Para maiores detalhes sobre os vínculos entre a Espanha e o Oriente, ver estudos de Juan Goytisolo (1997), De la Ceca a La Meca. Aproximaciones al mundo islámico.

[6] A perspectiva de Foucault sobre o saber enquanto relações de poder possui o seu valor teórico, mas não pode ser universalizada como única explicação para os fenômenos sociais. Seu alcance se limita a contextos históricos específicos, especialmente aqueles em que o poder ksatria (militar-burocrático) e, posteriormente, o vaisya (burguês-comercial) emergem e se tornam hegemônicos no mundo ocidental, como ocorreu com o surgimento dos Estados modernos e seus projetos coloniais e imperiais. Em contraste, o poder brâmânico (sacerdotal), fundamentado em um conhecimento desinteressado e não utilitário sobre o mundo — presente tanto nas tradições esotéricas orientais quanto nas universidades escolásticas medievais — escapa a essa lógica de instrumentalização mundana do saber.

[7] A capacidade de abertura islâmica ao liberalismo e às reformas seculares é também apontada pelo jornalista turco Mustafa Akyol (2013) em seu Islam without Extremes – A Muslim Case of Liberty. A obra relata as transformações políticas e sociais do Império Otomano no século XIX e o nascente liberalismo turco do período, que, muito antes das reformas de Atatürk e em pleno califado turco, já verificava uma progressiva adoção do sistema parlamentar e monárquico constitucional, bem como a consolidação de garantias e direitos individuais para minorias religiosas. Sobre os vínculos entre islã e liberdades individuais, ver em Gillespie, N. (2017).

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