
Influenciados pela arquitetura inorgânica, fria e utilitarista de Le Corbusier e pela subestética tosca dos grandes letreiros luminosos — à época, tão encontradiços nos painéis publicitários de Las Vegas ou de Nova Iorque —, os novos “poetas” paulistanos criaram na década de 1950 o Movimento Concreto. A escola pregava no âmbito da poesia a completa abolição das construções sintáticas e a consequente morte do verso, e terminou por criar uma porção de pseudo-poemas que, nas palavras de Manuel Bandeira, tinham mais parentesco com as Palavras Cruzadas do que com a Literatura propriamente dita.
Bernardo Souto
Quando um poeta vem ajudar o sonhador, renovando as belas imagens do mundo, o sonhador alcança a saúde cósmica. (Gaston Bachelard, A poética do devaneio)
O grande apego à tradição literária demonstrado pelos poetas da Geração de 1945 da Poesia Brasileira causou grande revolta em muitos escritores de viés revolucionário — esses “intelectuais” que viam nas chamadas Vanguardas Europeias uma espécie de ressurreição da Poesia Ocidental. No entanto, apenas duas dessas vanguardas se tornaram de fato proveitosas: o Expressionismo e o Surrealismo, já que os frutos do Movimento Cubista são bastante escassos. Estranhamente, apenas o Futurismo de Filippo Marinetti, que defendia a estúpida ideia de que a poesia da segunda década do séc. XX deveria buscar uma ruptura completa com o passado, chamou a atenção dos neovanguardistas brasileiros. Eis que, unindo algumas propostas marinettianas à incoerente e autocontraditória teoria de Maiakovski, segundo a qual “a arte revolucionária exige uma forma revolucionária”, um pequeno grupo de “poetas” paulistas lançou, na década de 1950, o Movimento Concreto, escola que pregava, no âmbito da poesia, a completa abolição das construções sintáticas e a consequente morte do verso.
Influenciados pela arquitetura inorgânica, fria e utilitarista de Le Corbusier e pela subestética tosca dos grandes letreiros luminosos — à época, tão encontradiços nos painéis publicitários de Las Vegas ou de Nova Iorque —, os novos “poetas” paulistanos criaram uma porção de pseudo-poemas que, nas palavras de Manuel Bandeira, tinham mais parentesco com as Palavras Cruzadas do que com a Literatura propriamente dita.
Os neovanguardistas de São Paulo acreditavam que a renovação da Poesia estava necessariamente atrelada à depreciação absoluta de toda a tradição literária ocidental. Curiosamente, quem soube apontar muito bem a enorme inconsistência do projeto concretista foi Ferreira Gullar, escritor que, na juventude, aproximou-se bastante do chamado Grupo Noigandres, formado inicialmente pelos irmãos Campos e Décio Pignatari. Analisando as vanguardas europeias mais radicais, como o Dadaísmo e o Futurismo, mas sem deixar de lado o Movimento Concretista brasileiro, Gullar chega à seguinte conclusão:
O novo na arte não tem que ser sempre um escândalo ou uma ruptura; pode ser – e na maioria das vezes é – o resultado de sutil exploração e aprofundamento temático e estilístico. Não obstante, a exigência do novo explícito tornou-se um fator decisivo na produção e na avaliação da arte contemporânea. Trata-se de um fenômeno decorrente dos movimentos de vanguarda que, como o próprio nome está dizendo, apresentavam-se como a última palavra em arte, a expressão da própria vida moderna, sendo o mais considerado ‘passadismo’, velharia, coisa superada. (in: “Sobre arte sobre poesia: uma luz do chão”.)
Gullar também aponta que o nascedouro desse ideário perigosamente antiestético se deu nas primeiras décadas do século XX, período de forte convulsão social, que culminou com a eclosão da Primeira Grande Guerra, com o advento da Revolução Russa e dos movimentos protofascistas. Marinetti, por sinal, era simpatizante do protofascismo italiano…
“Essas ideias [afirma Gullar] foram introduzidas, na verdade, pelo Futurismo e, especialmente, por Marinetti, que pregava a necessidade de a arte expressar a vida contemporânea, a cidade industrial, enfim, o futuro. Fundou-se assim o preconceito do novo, a busca em arte do novo pelo novo, responsável em grande parte pelo rumo que tomou a arte do século passado e a autofagia que a caracterizou.” (Gullar, 2006.)
Muito antes de Ferreira Gullar, entretanto, o grande poeta e ensaísta anglo-americano T.S. Eliot já havia percebido o perigo das vanguardas mais extremistas, quando, por exemplo, demonstrou que uma das principais características da grande arte é transpor o filtro do tempo. Evidentemente, o Concretismo não transpôs o filtro do tempo, na medida em que, pelo menos a partir da década de 1970, tornou-se um movimento datado e completamente superado. E não era para menos, pois uma subestética que elegeu o puro e simples ludismo verbal como principal bandeira, desprezando por completo a dimensão ontológica, numinosa e simbólica do texto poético (sem a qual a poesia se torna oca), não poderia mesmo sobreviver por muito tempo. O que mais surpreende, no entanto, é que até mesmo Haroldo de Campos, líder máximo do movimento, admitiu o fracasso da “Poesia” Concreta:
“Eu passei do Concretismo, propriamente dito [ver ‘Plano-Piloto para Poesia Concreta’], do pró-concreto, como experiência de limites [ou seja, como projeto vanguardista], à ideia de concreção, uma ideia de que todo poeta, digno desse nome, de qualquer literatura e de qualquer período literário sempre será um poeta da concreção.” (Entrevista ao programa Roda Viva, 1996.)
Ou seja, mais ou menos duas décadas após o lançamento do Plano-Piloto da Poesia Concreta, Haroldo admite que foi um grande erro pensar que o verso tradicional — a saber: o verso fundamentado na sintaxe da frase, da oração e do período — era desprezível. Portanto chega a ser risível que alguns subcríticos e subpoetas, contrariando a lógica e o bom senso, continuem a valorizar um tipo de pseudo-poesia que já foi renegada até mesmo pelo seu inventor. Prova disso é que o “poema” concreto continua a ser superestimado nas nossas universidades, sendo inclusive objeto de inúmeras teses de doutoramento. Ademais, em pleno século XXI, ainda existem inúmeros cultores desse tipo de subpoema.
É interessante observar, igualmente, que Haroldo, Décio Pignatari e Augusto de Campos não foram sequer inovadores, pois quem estudou um pouco a História da Poesia Ocidental sabe que a valorização semântica da mancha gráfica do poema — que, aliás, não passa de um recurso estético sem importância — não foi uma conquista dos chamados “poetas” concretos. Um tipo muito semelhante de procedimento estilístico, inclusive um pouco superior ao “poema” concreto, já era encontradiço desde a Grécia Antiga (em composições como o technopaignion, ou poema-figura); muitos séculos depois, a valorização da mancha gráfica na página em branco ganha novo fôlego, precisamente durante o Barroco (em formas poéticas como o labirinto) e, finalmente, renasce com toda a força na primeira metade do século XX, em poetas como Apollinaire e Cummings. Ambos utilizaram com frequência esse expediente composicional várias décadas antes do advento do Movimento Concretista brasileiro, que, como já foi dito, teve início apenas em 1952.
Portanto, não deixa de ser irônico que o Concretismo brasileiro — escola que proclamou ser a inovação sua viga-mestra — seja uma macaqueação de recursos estilísticos sem grande importância que surgiram há mais de dois mil anos. Nem sequer a teoria da tradução dos concretistas (a chamada tradução-arte ou transcriação) é inovadora, visto que se fundamenta nas teorias de Ezra Pound e de Roman Jakobson.
Alguém poderia objetar que o mérito dos irmãos Campos foi a revalorização de alguns poetas importantes, como o maranhense Sousândrade. Mas quem costuma ler os críticos brasileiros da primeira metade do século XX saberá que o autor de “O Guesa Errante” foi posto novamente em evidência por Fausto Cunha, ensaísta que se tornou famoso por se aprofundar no estudo do Romantismo Brasileiro, e não por Haroldo e Augusto de Campos, como a maioria das pessoas imagina.
Ao fim e ao cabo, para não ser injusto, creio que a única contribuição positiva dos irmãos Campos se restringiu a algumas traduções bem-sucedidas, sobretudo dos poemas de Rilke e de Emily Dickinson, à divulgação de alguns poetas europeus importantes, tais como Arnaud Daniel, Quirinus Kuhlmann e Osip Mandelstam, e a uns cinco ou seis de ensaios de crítica literária que não merecem ser desprezados.