
Em “A Paideia, a formação do homem grego”, Werner Jaeger enfatiza o papel da areté na cultura grega, centrada na transcendência ética humana. Enquanto a poética de Homero exalta os ideais éticos guerreiros em Ilíada e Odisseia, Hesíodo valoriza a vida cotidiana do homem do campo em “Os Trabalhos e os Dias” (Erga). A ética do trabalho é destacada nos Erga, revelando sua presença na sociedade grega muito antes do calvinismo, como preconizado por Weber. Os Erga mostra o trabalho como uma bênção e fundamento da virtude e justiça. A obra ressalta a heroica luta dos trabalhadores com a terra e a conexão íntima entre ordem natural e moral, onde o trabalho humano e o da terra são complementos de uma única força vital cósmica.
Tiago Barreira
A clássica obra de Werner Jaeger, “A Paideia, a formação do homem grego”, expõe como tese central que a formação pedagógica grega constituiu um grande diferencial decisivo da sua cultura em relação às demais. Esta formação estava fundada na crença da transcendência e autossuperação das capacidades humanas através do cultivo de ideais éticos, a areté. O mundo divino e o humano se encontravam intimamente entrelaçados, diante de um universo cósmico naturalizado e humano idealizado.
A concepção do poeta como educador do seu povo – no sentido mais amplo e profundo da palavra – foi familiar aos gregos desde a sua origem e manteve sempre a sua importância. Homero foi um dos exemplos mais notáveis desta concepção geral (Jaeger, 2001). Suas obras, Ilíada e Odisseia, foram expressões seminais deste ideal pedagógico de areté, ao manifestar em suas narrativas épicas modelos heroicos e guerreiros de conduta, nos primórdios da história grega pré-clássica, transmitidos oralmente entre as gerações.
Deve-se ressaltar também que, neste período pré-clássico, os modelos éticos da areté não estavam limitados exclusivamente à exaltação dos ideais de guerra aristocráticos e das artes marciais, como encontrada nas obras de Homero. Outros poetas do período exaltavam outros modelos, como os ideais camponeses do trabalho e do cultivo da terra, as denominadas artes mecânicas. Era sobre as virtudes do trabalho que versava uma outra importante obra da poética grega antiga, “Os Trabalhos e os Dias” (os Erga), de Hesíodo.
Os gregos colocaram ao lado de Homero, como seu segundo poeta, o beócio Hesíodo. Nele se revela uma esfera social totalmente diversa do mundo e cultura dos nobres (Jaeger, 2001). Hesíodo aplicou as virtudes da areté aristocrática à vida cotidiana camponesa, exaltando as virtudes do cultivo do solo e da vida camponesa como uma continuidade e desdobramento orgânico da vida cósmica natural. Hesíodo quer com plena consciência colocar, ao lado do adestramento dos nobres, uma educação popular e uma doutrina da areté do homem simples. A justiça e o trabalho são os pilares em que ela se assenta. (Jaeger, 2001)
Na poesia de Hesíodo, segundo Jaeger, consuma-se diante dos nossos olhos a formação independente de uma classe popular, excluída até então de qualquer formação consciente. Assim como a cultura aristocrática adquire em Homero uma influência de tipo humano geral, com Hesíodo a civilização camponesa sai dos acanhados limites da sua esfera social. (Jaeger, 2001)
Os valores éticos que exaltam as virtudes do trabalho não começaram com o calvinismo como descrito por Weber, mas já se faziam presentes muito antes, na poesia de Hesíodo. Em “Trabalhos e os Dias”, o heroísmo não se manifesta só nas lutas em campo aberto, entre os cavaleiros nobres e os adversários. Também a luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores com a terra dura e com os elementos tem o seu heroísmo e exige disciplina, qualidades de valor eterno para a formação do homem. O trabalho não é uma maldição, é uma bênção. (Jaeger, 2001).
Segundo Jaeger, através da pedagogia da areté camponesa de Hesíodo, Grécia antiga era uma cultura que punha apreço pelo trabalho como acima de tudo, muito embora a vida ociosa da classe senhorial se mostrasse um traço recorrente em Homero. A Grécia exigia de seus habitantes uma vida de trabalho. A isto se devia pelo fato de que a Grécia sempre foi um país pobre em recursos, não possuindo as vastas planícies de fácil cultivo, como norte da Europa. Seu solo era formado de múltiplos vales estreitos e paisagens cortadas por montanhas, o que obriga a uma luta incessante com o solo (Jaeger, 2001). A civilização grega seria alcançada pela areté do homem do campo, identificada como engenho e austeridade.
Para Jaeger, a agricultura e o pastoreio foram sempre as ocupações mais importantes e mais características dos Gregos. Só no litoral prevaleceu, mais tarde, a navegação. Nos tempos mais remotos predominou em absoluto a atividade agrícola.
Ainda que os detentores do poder e da formação tenham sido os nobres proprietários, a classe camponesa e trabalhadora possuía uma independência espiritual e jurídica considerável.[1] Não existia no período arcaico e pré-clássico grego a escravatura, e nada indica, mesmo remotamente, que aqueles camponeses e pastores que viviam do trabalho manual descendessem de uma raça subjugada, como acontecia na Lacônia devido às grandes migrações (Jaeger, 2001).
A poesia de Hesíodo revela o patrimônio cultural e intelectual que os camponeses beócios possuíam. Ao lado dos mitos, o povo guarda a sua antiga sabedoria prática. Nos Erga, encontramos todas as tradições do campo: velhas regras sobre o trabalho dos campos nas várias épocas do ano, meteorologia, preceitos sobre vestuário e regras para a navegação, envoltas em máximas morais, preceitos e proibições. (Jaeger, 2001)
Em paralelo à areté do trabalho, em Hesíodo introduz-se pela primeira vez um ideal épico que serve como ponto de cristalização a todos estes valores camponeses: a ideia do direito. A luta pelos próprios direitos, contra a venalidade e os abusos dos nobres poderosos, é um dos temas centrais do Erga. Hesíodo torna-se porta-voz de uma doutrina que maldiz a injustiça e bendiz o direito. (Jaeger, 2001)
Trabalho e justiça são valores intimamente ligados na obra de Hesíodo. O trabalho é o único caminho para se alcançar uma vida justa e virtuosa entre os camponeses. Uma vida justa entendida como posse moderada de riquezas, austera, moldada e aprimorada pela prática do trabalho. Os que trabalham e vivem justamente do seu ganho são premiados pelos deuses com abundância e prosperidade. Os que vivem da ociosidade, espoliação, da fraude e malogro são pelos deuses punidos. Isso se encontra claramente refletido nos conselhos morais proferidos a Perses, nos Erga:
“Trabalha para que a fome te deteste e a casta e bela Deméter te ame e encha de abundância os teus celeiros. Quem vive na pobreza é aborrecido pelos deuses e pelos homens: é comparável ao zangão, que devora o penoso trabalho das abelhas. Procura um prazer justo, dando-te ao trabalho numa medida equilibrada. Os teus celeiros se encherão, assim, com as provisões que cada ano te proporcionam.
O trabalho não é vergonha; a ociosidade, sim, essa o é. Se labutares, o ocioso te invejará pelos teus ganhos, aos quais se seguem respeito e consideração. O trabalho é a única coisa justa na tua condição: basta desviares a atenção da cobiça dos bens alheios e dirigi-la para o teu próprio trabalho, cuidando de o manter, como te aconselho.” (Jaeger, 2001)
Nos Erga, a doutrina relativa às tarefas profissionais dos camponeses penetra fundo na realidade cósmica, apresentando uma conexão íntima entre a ordem da natureza e a ordem da vida humana. A exigência de justiça e vida cotidiana honrada fundamenta-se na ordem moral do mundo. Para Hesíodo, tanto a ordem natural quanto a moral derivam igualmente da divindade. Ações e omissões humanas formam uma unidade com sentido, quer nas relações com seus semelhantes e com os deuses, quer no trabalho cotidiano. (Jaeger, 2001)
O ensinamento mais importante da poética formadora dos Erga não termina por aí. Jaeger nota que, em Hesíodo, a sabedoria prática popular e milenar camponesa, de experiência de trabalho e de vida, provém de algo ainda mais profundo. Trata-se de uma sabedoria humana nascida organicamente do contato com a terra, análoga a uma planta brotada do solo.
Neste sentido, vida humana e natural não se antagonizam, como seria colocada na ética do trabalho moderna, fundada em um dualismo cartesiano de submissão de uma natureza material passiva pela técnica humana. A ética do trabalho e justiça da Grécia Antiga pressupunha que a ação humana, enquanto trabalho consciente, e a ação natural, enquanto trabalho inconsciente, formavam um todo contínuo, e dois lados de uma única força vital cósmica.
O trabalho humano e o trabalho da terra se complementam, sendo a vida do trabalho e a sua sabedoria técnica, nas palavras de Jaeger, o desdobramento de uma corrente imemorial brotada da terra, esta inconsciente ainda de si própria. O mundo da cultura, da técnica, do trabalho e da sabedoria humana seria esta expressão máxima e cume da atividade da natureza, a sua planta mais nobre crescida, dotada de consciência de si. Esta é precisamente, para Jaeger, a parte mais comovedora da poética de Hesíodo e a causa principal de sua força.
Referências
Jaeger, W. (2001). A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes.
[1] Os camponeses, nas palavras de Jaeger:
“Todos os dias reuniam-se no mercado […] para discutirem os seus assuntos públicos e privados. Criticavam livremente a conduta dos seus concidadãos e até dos altos senhores, e “o que o povo diz” tinha importância decisiva para o prestígio e prosperidade do homem comum. Só na massa ele podia defender a sua posição e criar prestígio”. (Jaeger, 2001)