
Fonte: dasandere.it
O ensaio a seguir busca analisar a relação e a influência da cosmovisão islâmica no Ocidente a partir de um viés não só religioso, mas principalmente geopolítico, partindo da revisão conceitual e metodológica empreendida pelo pensador islâmico Mohammed Arkoun. O autor estabelece a necessidade de conciliação a partir do estudo pormenorizado do fenômeno religioso das diversas culturas que influenciaram o Ocidente tendo em vista a superação do estado de guerra e choque de civilizações citado por Samuel Huntington que se apresentam na modernidade.
Autor: Alessia Filippazzo. Tradução (Italiano – Português): Eliseu Cidade
Hoje, a religião islâmica representa um dos maiores desafios que a parte ocidental do mundo é chamada a enfrentar: assiste-se, de fato, um contínuo encontro entre duas cosmovisões, “Weltanschauungen”, que pareceriam destinadas a uma eterna incomunicabilidade. O tema da renovação do Islã está presente nos escritos dos intelectuais muçulmanos desde as primeiras décadas do século XX. Bennabi, Al-Jabri, Hanafi, Ramadan, Abu Zayd são só alguns dos pensadores empenhados nessa obra de reflexão da religião islâmica, que oferecem sugestões e reflexões interessantes e absolutamente atuais. Mohammed Arkoun, pensador de origem argelina que transcorreu grande parte da sua vida na França, assume uma função particularmente importante na construção de um diálogo entre religião islâmica e mundo ocidental: a despeito de muitos outros pensadores islâmicos, ele parece ser menos influenciado pelo mito do progresso e da modernidade que o Ocidente representa para aquela população que sofreu com o colonialismo.
Muitos dos intelectuais islâmicos, de fato, tendem a utilizar os instrumentos conceituais ocidentais, sem submetê-los ao juízo crítico preventivo. Arkoun soube absorver a cultura ocidental, mantendo o seu próprio olhar crítico e atento tanto para o Ocidente quanto para a religião islâmica, intuindo assim a necessidade de dupla reflexão, que, através de um trabalho de autocrítica, chama as partes em causa a redefinir a própria relação com o outro.
Os textos de Arkoun não abandonam a análise filosófica, histórica, sociológica e antropológica, mas são caracterizados por uma forte falta de sistematicidade. Ele foi um pensador que nunca observou a elaboração sistemática da escrita das temáticas que propõe, e portanto, a primeira vista, há impressão de que nos seus textos faltam uma coerente estrutura filosófica de referência. As razões dessa ausência de sistemática dependem da tarefa que ele, enquanto intelectual árabe, atribui a si mesmo. Não é necessário esquecer que as temáticas com as quais lida o autor nascem principalmente não de uma exigência intelectual, mas do problema concreto visto da sociedade islâmica da qual ele provém.
O autor atribui aos seus textos uma função pedagógica primária, visto que, ao analisar as posições e funções dos intelectuais, afirma que a tarefa específica do pensador é a de ser um “investigador-professor-pensador”: À função interpretativa do investigador do pensamento, o qual sustenta junto a tensão entre razão religiosa e razão filosófica, se adiciona à pedagógica, que deve considerar com a forte tensão educativa entre os dois campos, religioso e intelectual.
Por esta razão, a ausência de uma sistemática em Arkoun é a de imputar sobre sua vontade a de suscitar o interesse seja de um público mais vasto, muçulmano e não muçulmano, e de estudiosos de várias disciplinas ocidentais (sociologia, antropologia, historiografia, etc) que ele continuamente questiona. Ele conseguiu em partes seu intento: nos países francófonos os seus textos são lidos e estudados pelos sociólogos interessados na presença islâmica na Europa, objeto de muitas e acaloradas discussões sobretudo na França e na Bélgica.
Repensar o Islã, hoje mais do que nunca, é uma tarefa árdua e necessária. Cumpri-la significa descontruir, sem destruir, um conjunto de conceitualizações que tendem a reiterar certa visão de tal fenômeno religioso, dentro e fora do espaço definido e caracterizado da religião islâmica. Tal é o objetivo de Arkoun, cuja referência à necessidade de repensar o Islã nasce do fato de que, segundo ele, não existem estudos adequados, completos e orgânicos tanto em nível de conteúdo quanto a nível metodológico. Ele, influenciado pela cultura ocidental da qual apreciou grande parte dos pressupostos e resultados criticamente construídos, destaca porém a incapacidade dos estudiosos europeus de se relacionarem com outra cultura sem prejuízo. Nos países ditos de religião islâmica, por outro lado, estão quase totalmente ausentes aquelas condições sociais, econômicas e políticas que possam dar espaço a um processo autônomo de reativação dos fecundos componentes internos da própria religião islâmica.
O repensar do Islã, portanto, mesmo antes de dar o primeiro passo, encontra-se esbarrando em preconceitos, para superar o qual será necessário desenvolver preliminarmente um método eficaz para não cair novamente nos erros de sempre. Arkoun escolhe a historiografia como ferramenta para o repensar.
Por que a história? Arkoun afirma claramente que seu objetivo final é o de estudar as condições de possibilidade de uma recomposição do espaço mediterrâneo para além de suas fraturas, dos sistemas teológicos de exclusão recíproca da comunidade. Alinhado, mesmo que em partes, com a teoria do choque de civilizações de Samuel Huntington, opõe as grandes civilizações que dominam as duas margens do Mediterrâneo: a islâmico-oriental e a cristã-euro-ocidental. A ruptura entre os dois sujeitos culturais, que no passado dividiram o mesmo espaço, só pode ser curada por meio de um trabalho de autocrítica conduzido por cada cultura ao interior da própria tradição através de um arqueologia desconstrutiva. Trata-se, de fato, de um trabalho retrospectivo sobre si mesmo, capaz de abrir todos os documentos retirados da investigação dos historiadores, a fim de olhar a história dos sistemas de pensamento e de representações.
Repensar a religião islâmica significa, dessa forma, reescrever sua história, certamente não para alterar o passado, mas a fim de reconstruir um futuro: “A perspectiva da minha análise é prospectiva”, confessa Arkoun. O valor do trabalho histórico sobre si mesmo, através do qual cada grupo e cada nação produz sua identidade, se mede em relação às mudanças significativas subjacentes à rigidez sistêmica das representações de si e do outro.
O espaço mediterrâneo se torna nesse senso o lugar emblemático de conflito de civilizações que opõe o Islã do Ocidente e, ao mesmo tempo, o lugar o qual a reconciliação entre as duas polarizações se torna possível. A condição e possibilidade de recompor-se, de fato, Arkoun encontra-a na presença de uma história de fundação comum às três religiões monoteístas, enraizado no espaço mediterrâneo desde à Idade Média. Ele argumenta que a modernidade ocidental não substituiu de forma alguma a antiga narrativa fundacional, mas limitou a camuflá-la, adicionando a esse novo instrumento de pesquisa científica e mantendo a esperança escatológica da salvação eterna travestida sobre o conceito de progresso. A análise do fato religioso na sua realização antiga e na sua manifestação atual deve ser, portanto, elevada à categoria de objeto digno de estudo tanto na análise interna de cada cultura, quanto na pesquisa de uma reconciliação entre civilização em guerra. A reflexão da religião islâmica deve, por conseguinte, ocorrer através da análise do fenômeno religioso de tipo monoteísta, ao interno de um âmbito cuja religião venha considerada como dimensão universal da existência humana: O fenômeno religioso deverá ser analisado como processo cultural que compõe e estrutura um grupo social. Trata-se, em suma, de fazer uma história do pensamento e das representações religiosas.
Texto publicado originalmente como Occidente e Islam: scontro di civilità?, no site dasandere.it. https://dasandere.it/occidente-e-islam-scontro-di-civilta/